Orgulho brasileiro nas Olimpíadas skate já foi proibido na cidade de SP

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Se as medalhas de prata de Rayssa Leal e Kelvin Hoefler foram motivo de orgulho para o Brasil, mantendo milhões de pessoas acordadas em duas madrugadas seguidas, a realidade do skate e seus praticantes era bem diferente há pouco mais de três décadas. Entre maio e junho de 1988, além do preconceito que enfrentavam as primeiras gerações de adeptos do esporte, a atividade foi proibida na cidade de São Paulo.

Um dos líderes do movimento contra a proibição à época, praticante há mais de 40 anos e hoje empresário no ramo do skate, Marcio Tanabe relatou ao R7 como começou o embate.

Os skatistas da capital paulista tinham o Parque do Ibirapuera, nas palavras de Tanabe, como “o espaço de nossa prática, nossa história, a meca do skate, para nós”. Como ali também ficava a sede da prefeitura, Jânio Quadros, o então gestor do município, se incomodou com as atividades no parque e as proibiu por decreto, em 6 de maio.

Foi então que, no mês seguinte, os jovens se reuniram em um grupo de 200 pessoas e foram do metrô Paraíso ao Ibirapuera se manifestar.

“Fui com o megafone e todos gritando junto: ‘queremos o Ibira, queremos o Ibira!’. Mas um repórter soube da manifestação e chegou no parque na nossa frente. Ele perguntou para o prefeito o que pensava do ato, e o Jânio, que ficou sabendo na hora, mandou fecharem o portão do parque antes que entrássemos. A gente teve que ficar protestando lá fora”, relembra o líder do movimento, aos risos.

Skatistas se manifestaram contra veto de Jânio Quadros em 1988

Portas do parque se fecharam para o ato

Mais aborrecido ainda após o protesto, o prefeito então decidiu, no dia seguinte, estender a proibição para toda a cidade, chamando os manifestantes, em um memorando, de “meninos mal-educados”.

Foi neste momento, segundo o empresário, que começou a “caça”. As ações truculentas dos guardas municipais, entre “tapões na cara e chamar de maconheiro”, além do confisco aos skates, se tornaram mais comuns. “Todos nós passamos por sofrer ou ver casos de violência em algum momento. E só por praticar o skate”, afirma.

Oficialmente, o decreto se desfez após a revogação por parte da sucessora da Jânio Quadros, a prefeita Luiza Erundina, em 1989, logo que assumiu seu mandato.

O episódio do veto de Jânio é retratado no documentário Vida Sobre Rodas, que viaja pela história do skate brasileiro ao longo de duas décadas, costuradas com as trajetórias de quatro grandes nomes da modalidade: Bob Burnquist, Sandro Dias, Lincoln Ueda e Cristiano Mateus.

“Proibido é mais gostoso”

Apesar dos meses de proibição, Tanabe conta que parar nunca foi uma opção. Quando perguntado se o decreto os afastou da paixão sobre as pranchas, a resposta foi assertiva: “proibido é mais gostoso. Não só andamos como em agosto (três meses depois) eu realizei um campeonato chamado Ladeira da Morte, que acontece numa rua do Sumaré”.


A liberação da rua se deu a partir do contato de uma funcionária, que, enquanto professora universitária de Educação Física, pediu para a prefeitura o espaço para a realização de eventos esportivos – sem citar quais.

“Quando eles souberam, ficaram loucos. Mas já era tarde demais, os ingressos estavam vendidos e milhares de pessoas foram. Foi um sucesso. Quando o Jânio voltou de uma viagem no dia seguinte, a manchete era assim: ‘Jânio reforça proibição do skate na cidade de São Paulo’”, diz o skatista, mais uma vez, sem segurar o riso. Ainda houve espaço para um torneio de half pipe na avenida Paulista, televisionado para a TV Gazeta. “O prefeito mexeu com uma molecada com união nas ações”, comenta.

Para ele, parte dessa subversão às determinações do poder público se devia justamente à essência do esporte pelo qual aqueles jovens eram – e muitos ainda são, destaca – apaixonados.

“O skate era um movimento de contracultura naquele momento. Um movimento de jovens gritando pelos seus direitos, pela transformação da sociedade, por um olhar com espaço para o jovem. E o espírito é o da irreverência mesmo, de fazer a manobra antes do ‘não’”, considera Tanabe.

Somados a este caráter indisciplinado, o decreto do prefeito e o preconceito nas ruas – “nos viam como marginais” – se refletiam na atuação das forças de segurança.

“Os caras eram truculentos, sempre tratavam com violência, de forma áspera. Eu não enfrentei diretamente, mas fui interferir a apreensão do skate de amigos e vi eles tomando tapa. Como eu não estava de skate e era um pouco mais velho, não fizeram nada comigo, mas vi os guardas dando tapão, chamando de maconheiro. Era comum”, afirma.

O tratamento só mudava, segundo o empresário, “quando o guarda gostava de skate também. Aí eles respeitavam, tratavam bem e ficavam admirados se o cara fosse credenciado em alguma competição”.

Por conta da repressão, Tanabe brinca que, após as medalhas de Rayssa e Kelvin, os próximos dias serão os melhores para quem quiser praticar a modalidade: “essa é a semana de andar de skate em todos os picos proibidos, a PM vai cuidar da segurança, o zelador do prédio vai gravar o moleque andando no corrimão. Tem que aproveitar”.

Da proibição em SP às medalhas Tóquio

“O prefeito mexeu com uma molecada com união nas ações”

Rayssa Leal, Kelvin Hoefler e os outros brasileiros que competiram em Tóquio não poderiam andar sobre as rodas na São Paulo de 1988 ou teriam de desobedecer o decreto municipal para fazer o que amam. Mas se alcançaram os feitos para o Brasil na primeira Olimpíada com a participação do skate, uma porção disso se deve aos praticantes de décadas atrás e o fomento à modalidade.

Marcio Tanabe é parte ativa desta história; não somente se envolveu na prática esportiva e nos protestos, mas também atuando na produção de tênis de skate, de uma revista no ramo e, além de hoje possuir dois skate parks na capital paulista, com previsão para a abertura de um terceiro, realizou e organizou torneios desde a década de 80.

Vivendo toda a evolução do esporte neste período, Tanabe se comoveu com a presença dos brasileiros nos Jogos Olímpicos e com as duas medalhas, sobretudo a de Kelvin, que deu os primeiros passos e foi tetracampeão no Sampa Skate, torneio organizado pela prefeitura de São Paulo e coordenado pelo experiente skatista.

“Foram duas noites sem dormir. E ainda ver o Kelvin, que saiu de um projeto que eu criei, foi muito emocionante”, destaca.

Aos 57 anos, o empresário não deixou de praticar o esporte – inclusive em alto nível. Ele, que relata nunca ter imaginado competir em grandes circuitos, foi convocado para atuar pela seleção brasileira nos Jogos Pan-Americanos Masters de 2020, no Rio, posteriormente suspenso em março do ano passado pela pandemia de covid-19.

O campeonato inclui esportistas de a partir de 30 anos, mas a média da faixa etária dos competidores está na casa dos 50.

“Nunca sonhei com isso. Sempre pensei na atuação dos jovens internacionalmente, e me classifiquei à categoria mais velha do planeta”, comemora, em tom de brincadeira. Agora, Tanabe aguarda o fim da pandemia para competir pelo Brasil.
Guilherme Padin,

do R7

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